24/07/2009

PROCESSO CONSTITUINTE: Democratização das Autoridades Tradicionais, é possível?

Mais um Quintas de Debate foi realizado a 30 de Março de 2009, sobre o tema “PROCESSO CONSTITUINTE: Democratização das Autoridades Tradicionais, é possível?” Teve como prelector o Padre Virgílio Canário acompanhado pelos sobas Alfredo Candumbu e Piriquito Zé Manuel

Como proposta de reflexão, o prelector começa por questionar os participantes “é possível uma vivência de democracia dentro do poder tradicional?” Isto é a base da nossa meditação, aconselha, “devemos fazer esta reflexão tendo em vista o processo constituinte. Sabemos que o país tem uma lei máxima, que é a lei que rege todas as outras leis, que é a constituição e há possibilidade de fazermos uma revisão constitucional. A Assembleia Nacional está a trabalhar bastante na revisão”. “Também a nível da democracia, todos os sectores da sociedade civil deverão dar uma opinião em torno da revisão constitucional”, acrescenta. “Constitui uma das razões que leva a Associação Omunga a promover os debates sobre os mais diversos temas com a sociedade civil em Benguela. Por isso, pretendemos associar-nos a esta causa para o bem da sociedade”, frisou.

De regresso à apresentação, referenciou a fundação da Núcleo Diocesano de Direitos Humanos, no Sumbe. O seu objectivo visa trabalhar na educação cívica das autoridades tradicionais. Trabalhou com duzentos sobas (200) sobre os temas referentes a cidadania, e como êxito menciona “felizmente temos o orgulho de dizer que muitos sobas já têm conhecimentos sobre as leis angolanas. É esta experiência que queremos partilhar convosco.”

Muitas vezes, os conhecimentos sobre a lei não se faz só passando por uma cadeira da universidade e, muitas vezes mesmo sem saber ler nem escrever nós podemos conhecer a lei e em simultâneo nós estamos a proteger-nos ante a nós mesmos e às instituições que nos são confiadas defender. Vocês sabem que os Sobas têm as suas responsabilidades, várias aldeias e, se eles não souberem nada sobre a lei dificilmente saberão defender a sua comunidade, é nesta base que nós montámos o projecto de educação cívica com os nossos sobas.

Actualmente existem 3 mil e quinhentos e cinquenta e seis (3556) sobas, nos doze municípios do K. Sul. Os sobas presentes, Alfredo Candumbu regedor provincial das autoridades tradicionais e Piriquito Zé Manuel, presente, da Associação angolana das autoridades tradicionais (ASAT), saberão responder todas as questões relativas ao SOBADO que me ultrapassam, porque eu não vivo a vida de soba, eu sou padre. No entanto tudo que é relativo à vivência do sobado, eles vão poder responder porque eles vivem isso.

Foi-nos lançado o desafio de falarmos sobre a possibilidade da democratização das autoridades tradicionais, é possível? Sabemos que são vários os sistemas ajuizados pelas organizações sociais. De todos os sistemas, a humanidade ainda acha até hoje que a democracia continua a ser aquele que responde aos anseios de todos, desejo de termos nascido com igualdade de direitos e deveres, segundo a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Nós sabemos que nascemos com direitos e deveres. Direitos são de principio a possibilidades que nós temos de poder auferir da sociedade alguns bens, de importância material e quanto espiritual; e deveres que é a nossa resposta junto a sociedade. Nestes aspectos todos nascemos com os mesmos, mas, com as mesmas possibilidades de usufruir dos mesmos direitos e deveres, todos nascemos? O sistema político, o sistema organizacional que mais responde por esse anseio da humanidade, a esse anseio do todo homem e toda mulher é a Democracia, por isso o nosso país aderiu a este sistema. Na cultura africana, nós sabemos, que a autoridade de um chefe está estreitamente ligada ao facto da comunidade precisar de um líder, de um coordenador. Na nossa cultura e em todas as culturas humanas a existência grupal de toda a gente pressupõe a coordenação desse grupo. Então a chefia na cultura tradicional africana, está ligada a essa exigência de nós precisarmos de um líder.

Mas a referida autoridade não é consumada de forma singular. A autoridade tradicional não é exercida de forma individual; a comunidade é regida por um conselho de anciãos que constitui o grupo de pensantes e dirigente, dependente da aprovação do conselho dos chefes, que geralmente vem de uma família nobre, aquela que nós chamamos de família reinante, a família que deve dirigir a comunidade. Quer dizer que tão-somente para se ter um soba em Africa, não é necessário passar por uma faculdade, por fazer ciências politicas, nem carreira; é necessário somente nascer numa família nobre, a família do soba.

Os Sobas não são eleitos, fazem-se através do nascimento. Se ele vem de uma geração nobre, família que de princípio já tem a experiência de dirigir a comunidade, é dai que se tira o SOBA.

A estrutura institucional ordena-se por uma governação colegial, cujos conselheiros são os órgãos executivo e directivo da sociedade que têm a responsabilidade de formar o espírito comunitário através do fazer valer a justiça. Apenas quero frisar que “o Soba numa comunidade não manda a seu belo prazer”, tem um conselho! Ele antes de emanar orientações para a sua comunidade, de principio deve ouvir o conselho.

E na democracia quem ganha as eleições manda a seu belo prazer? Queria apenas realçar e, preciso saber a reacção do outro lado. Nas FAAS quem manda é a seu belo prazer? NÃO! De principio as perguntas que acabei de fazer estão relacionadas àquilo que é o espírito humano. Em todos os grupos humanos a pessoa não pode fazer o que bem lhe apetece, porque nós sabemos que dificilmente na estrutura humana alguém sabe tudo; a sabedoria está distribuída aos diferentes membros que constituem a estrutura humana.

No sobado também é assim, o soba na sua liderança conta sempre com o auxílio de um conselho. Na nossa terra, na perspectiva de muitos historiadores angolanos, a luta pela independência foi em certa medida participada pelas autoridades tradicionais, através da mobilização das populações para o apoio ao movimento independentista o que fez com que os sobas começassem a ter para além do poder de organização comunitária algum protagonismo político, o completou-se com a independência, tornando-os membros de forças políticas e dominantes em cada região de sua jurisdição.

Vou responder a uma questão que de certeza vai ser exposta: sobas ligados a partidos políticos, existe isso em Angola? Aqui em Benguela regista-se casos em que sobas têm compromissos com algum partido? SIM! Vamos fazer uma reflexão desta realidade registada em nosso país. Em Angola há sobas que vivem como militantes de vários partidos políticos. Certamente vai aparecer uma meditação em volta disso. Os mais velhos vão coadjuvar na reflexão durante o debate em torno desta temática.

Mas eu disse aqui, o historial do nosso país fez com que os sobas tivessem este pendor, esta catalogação de estarem orientados por uma ou outra bandeira partidária, porque contribuíram na sensibilização do povo para o esforço que se fez na busca da independência.

Quem nasceu depois da independência, que levante a mão? Constituem a minoria e também os mais novos! Nós somos os mais velhos que vimos o país antes da independência, realmente podemos reflectir nisso! Os movimentos, espalhavam aquela sede de poder, sede de trocar o poder que era dado aos estrangeiros, à potência colonizadora. Os angolanos precisavam daquele poder e por isso começaram a lutar. Mas não tinham a população em suas mãos, porque esta sempre esteve liderada pelas autoridades tradicionais. Contudo as forças políticas lutaram para que as autoridades tradicionais trabalhassem na mobilização das populações para o esforço pela liberdade nacional. E logo após a independência, aqueles (os movimentos de libertação) assumiram o poder na grande divisão do país em três blocos. Estamos em paz e podemos dizê-lo, a nação estava dividida pelo bloco Norte, Sul e Leste que era concorrido, e as forças politicas em função da libertação nacional mantiveram-se divididas. Pelo facto das autoridades tradicionais esticarem as suas pernas na barriga de alguém, dentro do poder político, viram-se forçadas a dançar a música daqueles que detinham o poder. Foram forçados! Não é a sua vontade! Nem é assim que está estabelecido a nível das organizações! Foram forçados a serem assim!

Para muitos, algumas das dimensões das autoridades tradicionais são incompatíveis com a regra democrática, porque nesta há a separação de poder, separação esta que é basilar na democracia. Nós só dizemos que há democracia quando num país os três grandes poderes que constituem um estado estão separados. São poderes que constituem o estado: o poder Executivo, Legislativo e o poder judicial. A justiça, o parlamento e o governo devem constituir poderes separados, só assim temos uma verdadeira democracia. Assim questiono o auditório, temos ou não democracia? TEMOS DEMOCRACIA EM ANGOLA e, a democracia que temos no país, não é uma democracia que está no papel, é uma democracia que está em processo.

Estamos no primeiro degrau daquilo que é a caminho para o estado livre. Nós temos a democracia como um processo. Nós temos de ter um país verdadeiramente democrático. Temos de ter tribunais isentos do poder político; temos de ter um governo que não interferisse nas decisões do parlamento, e temos de ter um parlamento cujos deputados não dependem de cores partidárias.

O cidadão ao receber o seu ordenado, jamais deve encará-lo como um favor que o governo faz ao cidadão, mas sim que o governo deve fazê-lo junto ao cidadão, porque é o cidadão que deve receber do seu estado, uma vez que somos parte do estado. Realmente estamos em Angola onde estes três poderes (executivo, legislativo e judicial) fazem com que não tenhamos uma verdadeira democracia, porque ainda não são poderes separados. Porque a democracia a nosso nível ainda está em processo. No entanto o que tentamos dizer aqui é que na autoridade tradicional, o poder executivo, o poder de fazer as leis e também o poder de fazer cumprir as leis, todos estes poderes estão concentrados nas mãos dos sobas. Na aldeia, os sobas são o ministro da agricultura porque são eles que entendem de todos os terrenos que existem na comunidade.

O soba é o ministro da economia porque é ele que vai fazer a gestão com a renda da produção comunitária. O soba também é ele que faz as leis e é ele que diz onde se pode e não de pode ir. O soba é quem castiga as indisciplinas cometidas na comunidade, ou seja é no soba onde está centrado todo o poder e aí vem a nossa reflexão. Este homem que controla todos os poderes, podemos assim dizer que este homem tem em si a possibilidade de viver a democracia, democracia que é o sistema que separa os três poderes? Aí vem a minha questão: há possibilidade das autoridades tradicionais reverem a democracia no seu seio? Respondam, é possível? Há ou não há possibilidades? Então estamos com resposta divididas.

Os sobas não orientam sozinhos a aldeia, eles contam com o seu conselho. E em democracia de facto, nós temos a ditadura da maioria, a maioria se vota fica a ditar as leis para aqueles que não votaram naquele partido. Sim ou não? Existe ou não concentração do poder em casos onde as regras são ditadas pela pluralidade? Os cidadãos que votaram naquele partido vencedor são os que ditam as normas àqueles que não votaram no partido vencedor.

Por exemplo os países considerados de tradição democrática mas que fazem coabitar no seio da nação o poder do Rei e da Rainha. A Inglaterra, a Alemanha e outros países que não têm presidente da república, mas têm um Rei e uma Rainha, um primeiro-ministro e um parlamento que funciona. E mais, foi possível coabitar nestes lugares os poderes que paralelamente são diferentes. Não devíamos facultar aos nossos sobas o mesmo poder que a Rainha Isabel da Inglaterra tem, pelo papel desempenhado pela Rainha no seu país? Vocês sabem qual é o papel da rainha da Inglaterra? Por acaso houve eleições na Inglaterra para encontrar uma rainha? E na Espanha, já ouviram falar de eleições para se encontrar um rei? O rei e a rainha vêm da família real, a família nobre deste país e os nossos sobas também vêm de famílias nobres.

A democracia está apenas restringida aos votos que depositamos de quando em vez? Se sentimos a democracia como o espaço de participação de todos os cidadãos, eu posso vos garantir que nestes seis anos que venho trabalhando com estes sobas, tenho acompanhado sinais de democracia no seio das autoridades tradicionais.

O sistema de lideranças da aldeia é o mesmo em todos os países, onde temos comunidade e liderança. Há vestígios de liderança quando os líderes não tomam as decisões por si só, isso também acontece nas aldeias.

Em todo e qualquer grupo humano pode-se viver possíveis sinais de democracia, e como tal não deve apenas restringir-se ao voto, mas sim, à participação da comunidade nas tomadas de decisão da aldeia. Isso sim, é democracia! Falamos de territórios onde os cidadãos vivem plenamente a participação cívica, o que representa sinónimo de vida politica activa, patriotismo, cidadania e participação pública. Partindo da lógica em que os partidos políticos não podem ter a presunção exitosa de toda a vida social, põe-se de forma paralela (não para concorrer ao poder, mas, para servir de contra pêndulo) o aparecimento de uma força fiscalizadora, estabilizadora e uma sociedade civil forte e actuante.

Garanto que nas aldeias existem pequenos “focos” de sociedade civil, que geralmente estão contra o poder tradicional. Nós vemos nisto uma sociedade civil que está a fiscalizar a acção do soba? É também! De facto há democracia.

Olhando por aquilo que é reflexo da realidade angolana e, mirando as experiências bebidas das actividades realizadas com os sobas do K.Sul, podemos constatar que o poder exercido pelos partidos políticos de principio, é a razão de ser e da sua existência. Nós já estudámos que os partidos políticos se constituem para atingir o poder. Os partidos políticos que ao longo da sua existência nunca conseguiram o poder, devem reflectir. Daí o factos de muitos partidos políticos durante as eleições serem colocados à margem do poder político porque não conseguem a percentagem de votos que garantam a sua permanência como grupo político. Muitos partidos que não conseguiram assentos no parlamento foram extintos e deixaram de receber dinheiro do orçamento do país porque não conseguiram o mínimo para isso. De igual modo, todo o partido deve conseguir maneira de alcançar o poder, porque isso constitui a sua finalidade. As autoridades tradicionais não lutam para ter um poder e têm como objectivo a unidade comunitária. Os sobas só existem para a unidade comunitária e constituem o pólo de união numa comunidade (pessoas que estão ao serviço da comunidade).

Várias vezes eu disse aos nossos sobas nas nossas formações que nós temos de lutar para que realmente o estado angolano reconheça que o poder tradicional é um poder à parte, mas é um poder que deve estar plasmado na lei, inclusive na constituição angolana, As autoridades tradicionais devem estar espelhadas na nova lei do país de forma a evitar equívocos, e realmente porque eles também têm autoridade.

Existem situações que as administrações não resolvem, apenas outra pessoa. Alguém já foi preso porque colocou TALA em alguém? São os sobas quem normalmente resolvem crimes de feitiçaria. Há um poder que os estados reconhecem e não pode ser controlado. Poderes misteriosos que vêm pelo facto de eles serem líderes comunitários.

Há um poder que os estados africanos reconhecem. Um poder incontrolável, um poder misterioso que vem pelo facto de serem lideres de comunidades. E um poder por idoniedade, de linhagem, por isso sagrado. Estes poderes resolvem aquilo que cientifcamente não está plasmado.

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